14 setembro 2006

O Grupo na Net

Informo, aos interessados, que o disco M'águas passadas, do Grupo Norte-Sul, se encontra disponível na Net em http://www.esnips.com/web/nortesul

A Casa da Micas deu o primeiro passo, ao incluir uma música dos Norte-Sul nesse prestigiado cantinho.

Obrigado, Maria, pela tua atenção.

05 setembro 2006

A casinha da Caló


Mal cheguei de viagem, ainda o jet leg se fazia sentir, e as malas repousavam, cheias, no chão do quarto, já o telefone tocava. Era o companheiro Cachaço a desafiar-me para ir ter com ele a Portel. Adivinhava-se três dias de farra como só os alentejanos sabem fazer. O petisco, era, nada mais, nada menos do que uma caldeirada de peixe do rio feita pelo Ti Canhola e pela Ti Ana. Não conto os pormenores, porque, para isso teria que pôr uma bolinha vermelha no canto do ecrãn do computador, e não sei como o fazer. Adiante.

No Domingo, depois da açorda d'alho, o Zé Lopes, que também estava no grupo, partia para a terra da Caló, sua mulher. Uma pequena povoação, Esperança, perto de Arronches, distrito de Portalegre, Alto Alentejo. Para variar, os penduras do costume foram logo atrás.

No Crato assistimos a um excelente espectáculo com o Carlos do Carmo e o Fernando Tordo a relembrarem o Poeta Ary. Segunda-feira de manhã tivemos que partir para Lisboa. Foi uma breve estadia, mas foi muito gratificante. A hospitalidade do casal já era, por nós, sobejamente conhecida, mas ali, num isolamento perfeito do campo, revestiu-se de outros sabores.

Obrigado a todos os amigos, pela vossa partilha.

04 setembro 2006

De volta!















Entende-se, por viagem, uma partida, uma chegada. Um movimento onde o presente antecede um futuro com data marcada num bilhete de avião, por exemplo.
Por isso, durante a viagem, os sentidos tomam conta do viajante tornando-o num devorador de momentos passados.
A viagem a Cabo Verde foi uma viagem feita com o coração. As formas, as cores, os sons e os cheiros que o coração entende, por vezes são bem diferentes daqueles que nos chegam aos olhos, aos ouvidos, ao nariz, ás mãos.

Não vai o Perdigão, por isso, mostrar imagens ou sons que reteve durante o tempo em que visitou o arquipélago. Apenas o faz em relação aos viajantes, companheiros de sentidos, que de ilha para ilha foi conhecendo e a quem agradece a companhia.

Ao Ernesto Damião, á sua mulher Isabel e ás suas filhotas, verdadeira família de viajantes. À Sandra, à Teresa e à Anabela. Ao casalinho do norte (perdoem-me a falta dos nomes). Ao Gabriel, solitário perdido entre ilhas. A todos que connosco partilharam a magia daquele povo, obrigado.

Mindelo

São cinco horas da tarde. Sinto-me como um sorvete, que alguem, por incuria, se esqueceu de guardar no frigorífico. A pouca roupa que trago cola-se-me como uma segunda pele. Sucessivos goles de água tentam, em vão, repôr a que, constantemente perco em rios que me percorrem o corpo. Como é que esta gente aguenta tanto calôr? Interrogo-me ao mesmo tempo que pergunto à Fátima se falta muito para chegar-mos à tal loja de artesanato “maravilha” onde tudo é autêntico e a preços de “bexiga de camelo”.
- É já no outro lado da rua. Vamos atravessar!
Entrámos. Lá dentro deparo com uma Meca de artigos espalhados, amontoados sem critério aparente, pelo menos para mim, vigiados por dois pouco dissimulados berberes.
Ao menos têm ventoinhas, e logo estaciono o meu afogueado corpo por debaixo de uma delas.
Ao balcão estão duas raparigas. Uma delas, nitidamente, é crioula. Olha para mim de forma complacente com o meu estado, e até lhe noto uma pontinha de piedade. Isso é o suficiente para me fazer mexer e ir ao encontro da Fátima, já perdida entre colares, pulseiras e panos, sei lá de que proveniências. De Cabo Verde não são. Talvez senegalesas ou do Mali a avaliar por algumas estatuetas e máscaras em madeiras que, de todo, não criaram as suas raízes nestas sequiosas terras.
O artesanato de Cabo Verde resume-se a alguns artefactos feitos em casca de tartaruga ou casca de côco, e tem o seu expoente nos produtos da transformação da cana do açúcar: o grogue, o ponche, o mel de cana. Os licores de fruta, de tangerina, de laranja ou de manga também são muitos apreciados, assim como as compotas ou dôces feitos, ainda, à maneira antiga e sem conservantes. Pequenos brinquedos feitos de folha de lata das embalagens também se vêem, mas pouco, assim como as tapeçarias de lã, muito caras e quase exclusivas de alguns ateliers.

Agora já mais refrescado, começo a sondar, de uma forma quase cirurgica a mercadoria exposta, e até a menos exposta, procurando por detrás de ‘bonecadas’, por baixo de prateleiras, rente ao chão, algo que me tocasse, que eu achasse que valia a pena trazer, e aí pensava nos amigos em Portugal e na forma de como lhes passar um pouco do testemunho da minha viagem.

Não dei pelo tempo passar, e quando me apercebi, o balcão da loja encontrava-se meio cheio de embrulhos, feitos em papel pardo. Do meio dos embrulhos saiu a vóz da Fátima, fraca e susurrante, depois de atravessar tantos obstáculos:
- Então, já escolheste as tuas prendas? Trá-las para eu fazer negócio, aqui com a amiga Fátima! Chamava-se Fátima, a crioula que há pouco me olhava piedosamente.
Eu juntei algumas peças que achei interessantes às do balcão. O negócio fez-se, entre propostas e contra-propostas, teios e regateios mais parecendo uma reunião da concertação social. Por fim, acertado o preço, e na altura de pagar, eu em jeito de desabafo e com esta mania parva de brincar com tudo, atiro para o ar:
- Bem, com o que aqui gastamos, não sobrou nenhum dinheiro para o jantar!
A Fátima, que por acaso era crioula, com a voz um pouco embargada pela timidez, mas onde era por demais evidente a sinceridade, disse-nos, olhando-nos nos olhos:
- Isso não pode ser. São meus convidados a jantar em minha casa!
Olhei para a Fátima, que por acaso não era crioula, e revi na sua cara a minha cara. Naquele instante tinhamos percebido o significado da palavra morabeza.

Santo Antão

O ‘Mar d’Canal’ fazia agora parte da terra firme. As amarras que o prendiam ao cais mantinham-no imóvel num reiterado compromisso entre cosa di terra e cosa di mar. Enquanto esperavamos pelo nosso transporte para a visita à ilha, os pés iam-se habituando, de novo, à solidez de um chão que, finalmente, deixara de se mover como se tivesse vida própria.
Em pouco tempo toda a zona portuária se transformara numa enorme Meca, com gente trazendo, levando, gesticulando e gritando a oferecer serviços de transporte e de estiva.

Santo Antão é uma das ilhas mais acidentadas do arquipélago, e a mais exuberante em vegetação. É terra de camponeses que com arte e engenho cultiva as suas íngremes encostas, tentando livrar a água e a terra dos intermináveis abismos. A única pista de avião encontra-se desactivada, penso que desde o acidente áereo ocorrido na ilha nos anos 80. Todos os bens necessários chegam do Mindelo atravessando o Canal que separa as duas ilhas. Assim, enquanto esperavamos, vimos passar sofás, antenas parabólicas, banheiras, cabras e porcos, enfim tudo o que se possa imaginar pertencer ao espólio de uma gigantesca quermesse de feira.

Finalmente o nosso guia, o Morais, lá nos encaminhou para a já familiar Toyota, e iniciámos a grande subida. Mal tinhamos percorrido duas centenas de metros o Morais informa-nos que vamos parar para comprar água ou tomar café, pois esta excursão é non stop. Teriamos que estar de volta antes das seis horas da tarde, hora da partida da única carreira para o Mindelo. Parámos num café sobranceiro à falésia onde se avistava o Porto Novo como um enorme formigueiro, agora visto de cima.
Entrámos no ‘Sereia Azul’, que em pouco tempo lotou com o nosso grupo. Achei estranho não haver ninguém para nos atender, mas pensei: - Estás em Cabo Verde, meu, nada de stress. Os minutos iam passando e nem sombra para nos aviar umas bjecas. O pessoal já estava a desatinar quando reparamos, que mesmo em frente, do outro lado da estrada, um homem, imóvel, contemplava o movimento no cais. Era o proprietário do café, como mais tarde se verificou. A chegada do barco, era a chegada de notícias, dos amigos, da família, e nem estes tempos em que o turismo vinha quebrando algumas barreiras eram suficientes para pôr fim ás lágrimas de uma partida, aos sorrisos de uma chegada.

- Bom dia. O que vão querer, por favor?

Campo da morte lenta


Penso que já tudo foi dito sobre o Tarrafal. O que ele representou, na dura vida daqueles, que por uma sociedade mais justa, tiveram a coragem de lutar contra a ditadura salazarista.
Só posso falar de emoções, comoções, sentimentos desordenados que vão desde o mêdo e o terror até à bravura, coragem e determinação de quem, preso, defendeu a liberdade dos que se encontravam fora daqueles muros.
É isto que se sente quando se transpõem aqueles portões. Sentem-se os passos nas celas, os gritos dos torturados, o definhar pela doênça e pelos maus tratos daqueles que na frigideira, na tortura da água, nos choques eléctricos, na estátua, perderam a vida, mas nunca a dignidade e a razão dos ideais em que acreditavam.


Tarrafal, que nunca mais!!!!

O Zezinho

Oi! Bom dia! Tudo bem? Como vai?

Um aceno, um sorriso, o telefone que não para de tocar. Uma paragem no caminho para desentorpecer as pernas e para dar boleia a alguem conhecido (os transportes públicos são muitos deficitários em C.Verde, e fora das principais cidades, enexistentes). De novo mais cumprimentos, saudações – N’hô Mané, como passa?
É um nunca mais acabar de conhecimentos, amigos e família deste verdadeiro “Papa de Santiago”
O Zezinho é natural do Fogo e veio para Santiago aínda muito criança. Hoje mereçe o respeito de todos, conquistado pela sua singular bondade, quer na capital quer nas vilas do interior onde conhece, literalmente, todo o mundo. Foi o nosso guia-amigo na ilha.

Uma vêz, a caminho da Cidade Velha, passámos pela carcaça abandonada de um carro, e que servia de morada a um macaco – Cabo Verde tem macacos em liberdade. Alguns são capturados e exibidos como animais de estimação – o Zezinho volta-se para o grupo e diz:
- Agora vou cumprimentar um velho conhecido.
E quando o carro passa pelo macaco, o Zezinho estica o braço para fora da janela e saúda o bicho. Então, para espanto de todos, o animal retribui o gesto, levantando o braço de igual forma. Foi gargalhada geral!

A viagem começara com alguma apreensão. Não só pela estreita estrada (?) de montanha que percorriamos, mas também pelo roncar do motor da viatura que, qual fumador atacado pelo catarro, expelia continuas baforadas de fumo negro. Aproveitando uma ligeira descida, meio receoso, meio a brincar, pergunto-lhe:
- Zezinho, este carro tem revisão?
Ele olha-me serenamente com um sorriso e pisa o travão fazendo imobilizar o carro com uma chiadeira infernal.
- Não há problema, agora já tem máquina de revisionar viaturas. Se a máquina estiver boa, a revisão também está!

Com um humor só proporcional à sua bondade o Zezinho descreve-nos a sua terra, as suas gentes. Histórias do passado, histórias que serão de esperança num futuro ansiado por quem pouco tem de seu, e por ter pouco a perder se lança numa desigual luta contra a adversividade.
- Aqui, à esquerda, é o Palácio da Justiça. Foi feito pelos chineses e entregue ao Governo de Cabo Verde.
Andamos mais uns metros, e ele continua:
- Além, à direita, é o Palácio do Governo. Foi feito pelos chineses, sem qualquer encargo para o Governo de Cabo Verde. Mais adiante, continua:
- Aqui temos o Centro de Congressos. Foi feito pelos chineses, também.
Chegados à Cidade Velha, defronte das antigas muralhas de uma construção militar, diz o Zezinho:
- Aqui é o Forte de São Filipe, construido pelos portugueses nos finais do Sec XVI. Ainda hoje os chineses andam amarelos de raiva por não o terem construido!

Obrigado Zezinho por nos revelares a grandeza de Cabo Verde.

Amigos da Praia




Um abraço a todos!

Santiago

Cidade da Praia, 21 de Agosto, 18:30 horas.

Tinha-mos acabado de chegar de um percurso pela ilha. O duche aliado à climatização do quarto do hotel quase que fizera esquecer o calor húmido e sofucante do dia.
Peguei no telefone e liguei o número que trouxera desde Lisboa num e-mail trocado a tres: Eu, o Rogério Charraz e aquele que seria o nosso contacto na cidade. O Pedro Pereira.

- Pedro?
- Sim...
- Fala o Zé Manel, amigo do Charraz...
- Olá amigo, tudo bem? Onde está?
- Estou na Praia, no hotel PraiaMar. Acabei de chegar duma excursão pela ilha.
- Ok. Quantos são voçês?
- Somos dois. Eu e a minha mulher, a Fátima.
- Fazemos assim: Refresquem-se, descansem um pouco. Eu passo aí para vos apanhar por volta das 19:30 horas, para jantarmos. Levo uns amigos comigo. Combinado?

Foi a nossa primeira conversa, mas já se faziam notar alguns dos aspectos da personalidade deste Portugûes da Alcântara, há cinco anos residente em Cabo Verde: Objectividade; simplicidade e gosto de bem receber.

Fomos ‘petiscar’ a uma casa onde já eram clientes habituais. Connosco, alem do Pedro, estavam as suas duas filhotas, encantadoras, e que de uma forma natural, como se fossemos velhos conhecidos se entregaram à conversa, sobretudo com a Fátima. Pouco depois chegou o Francisco, a Conceição mais a filha do casal, e a noite começou. E começou bem, com caipirinhas que regaram, entre outros piteus, uma carne sêca com feijão, que tão depressa não me voltará a passar pelo estreito.

Daqui, o que eu quero salientar, é que nenhum deles nos conhecia. Não sabiam que tipo de pessoas éramos, e desde o primeiro momento, abriram-nos as portas do seu mundo, sem falsos pudôres, de uma maneira franca e honesta. Contaram-nos os seus bons momentos mas também nos contaram os menos bons e da forma como se entreajudavam para os ultrapassar, vencendo as naturais dificuldades naquelas terras estranhas onde eram emigrantes.
Pessoas simples e serenas, com o gosto de partilhar e a arte de bem receber, e no final da noite já todos nos tratavamos por tú.
Ao Pedro, ao Francisco, á Conceição e ás três lindas meninas, os nossos enternecidos agradecimentos pelos momentos que nos proporcionaram.


Ah, é verdade, só para que conste. O Pedro Pereira é Director de Distribuição da Electra. O Francisco é Director de Um Banco. A Conceição foi representante da TAP em Cabo Verde, neste momento trabalha na Embaixada de Portugal.

Sal

Fonte de nha sodade

Êxe spancadura que bo ti ta uvi
ca ê roncadura de pómba, nem vôo de pardal,
Ê bo coraçom ta crê saí
desse peite que ti ta pertál.


Paré:
Li ondê que já tive um horta,
hoje ê sô um pórta
pa mundo de bo ôte idade,
bôs lembrança ta speróbe.
Bá nh'armom, bá, bá mata sodade!....

Sérgio Frusoni (Cabo Verde)

TRADUÇÃO

Este espancar que estás a ouvir,
não é marulhar de pomba, nem voo de pardal.
É o teu coração a querer sair
desse peito que o está a apertar.

Pára!
Aqui onde já houve uma horta,
e hoje é apenas uma porta
para o mundo da tua outra idade,
as tuas recordações esperam-te.
Vai irmão, vai matar saudades!....

« Todo este campo foi, outrora, uma jardim verde. Abundante de produtos hortícolas: Batata, feijão, tomate, bananeiras, coqueiros, tâmareiras, mangueiras. O milho era tão alto que uma pessoa tinha que o vergar, debaixo dos pés, para encontrar o caminho onde pisar. Isto contava-me a minha avó, quando menina para aqui vinha trabalhar nas terras da família. Hoje é esta desolação de pedras e pó, onde nem os lagartos aguentam uma vida tão dura.»
Assim soavam as palavras do nosso guia Edy, soluçadas pelos solavancos da Toyota de 12 lugares que percorria aqueles caminhos pedregosos, levando o grupo que partira da vila de Santa Maria do Sal até as “Terras das Miragens”.
Edy é um crioulo nascido no Sal, a quem, pelo seu empenhamento e esforço foi facilitada a educação em Portugal. Hoje, com 25 anos e um curso de relações públicas, Edy é um dos muitos guias turísticos a operarem na ilha. « Trabalho bom. Limpo. Conhece-se muita gente. Mas tô penssando dar o salto pra longe. Não sô galo de capoeira, não,»

O Sal. Foi sem dúvida a menos atraente das ilhas do arquipélago que visitei.
Os hoteis, resorts e estâncias sucedem-se a um ritmo alucinante. As filas no balcão das toalhas de praia, a louca corrida ás espreguiçadeiras da piscina ou o ataque kamikaze ás mesas do buffet quase me faziam esquecer a morabeza com que fora recebido nas ilhas por onde passei. O turista pé-descalço, aquele que, de máquina em punho, filma as mesas do pequeno almoço no hotel (eu vi, não é treta) enche por completo a ilha. Famílias numerosas de seis ou sete pessoas, com crianças em constantes birras, casais de meia idade a discutirem na praia porque ele não tira os olhos da loura que a seu lado se encontra, lânguidamente deitada e que lhe exibe os naturais atributos. Enfim, de tudo um pouco, a lembrar um típico domingo nas praias da Costa de Caparica.

O assalto por senegaleses em constantes tentativas para vender bugigangas, ditas artesanais, que nada têm a ver com o artesanato, pobre, de Cabo Verde, tomava porporções surrealistas, ao ponto de te colocarem sucessivos colares ao pescoço na esperança de que, pelo menos um, tu irias comprar.

Felizmente que foram só dois dias e que eu trazia indicações dos melhores sítios onde comer, gentilmente passadas pelo nosso amigo Pedro Pereira aquando a nossa estadia na cidade da Praia. Aqui fica o registo simpático da nossa passagem pelo restaurante Mateus onde a boa culinária e a simpatia do proprietário aliada a uma música tradicional tocada ao vivo e sem microfones foi o bastante para fazer renascer em mim o espírito simples e sincero das gentes de Cabo Verde.

E como para confirmar a regra existe sempre uma excepção, quero aqui contar a perola que em todas as minhas crónicas sobre as ilhas que visitei em Cabo Verde sempre acontecerá.

Uma noite, vinhamos do jantar no Mateus, a caminho do hotel, quando demos pela presença de uma figura que sentada no passeio parecia remexer em algo á sua frente.
- Não deve estar a vender nada, pensei eu. Ali, quem queria vender alguma coisa corria atraz dos possíveis fregueses. E avançei, já disposto a não parar. Mas nestas coisas da alma, a Fátima tem um sexto sentido, raramente se engana, e de repente, diz-me: -Vamos ver o que está a fazer!
Quando chegamos, vimos um homem, ainda novo, não deveria de ter mais de trinta anos. Mas pelo seu aspecto, descalço e de parca vestimenta, aparentava pelo menos cincoenta. Á sua frente tinha um montículo de pequenas conchas, búzios que a maré trouxera para a praia onde os recolhera. Respondera á nossa saudação com um «boa noite amigos» sem levantar os olhos do que estava a fazer, retirara uma agulha de dentro do caos organizado que era a sua cabeleira de rastas e com ela furava os pequenos búzios que enfiava, entrecalados, com contas coloridas num pedaço de nylon. Disse que se chamava Imanuel, mas que todos o conheciam por Ima. Não tinha família ou outros bens. Dormia na praia, vivia do que lhe davam e da magra receita dos seus trabalhos com conchas. Não lamentava a sua sorte. Esta era a vida que lhe fôra dada. Aceitava-a com a submissão de quem crê que todos os homens têm o seu destino escrito á nascença.
Perguntou-nos de onde eramos. Respondemos que eramos Portugueses, de Sintra.
Nunca tinha saído de Cabo Verde, mas um amigo em tempos lhe dissera que Sintra era a última paragem de uma linha de combóios.
A pulseira de búzios ficara completa. Deu-lhe um nó nas extremidades, levantou os olhos para a Fátima. Uns olhos de um azul claro onde morava o mar de Cabo Verde, e disse: - esta é para ti. É uma oferta!
Seria apenas mais uma dissimulada maneira de ganhar dinheiro? Seria uma manhosa artimanha de levar a vida? Não acredito! Fosse o que fosse, o Ima veio connosco no coração! Abri a minha carteira e quase que a despejei nas suas mãos. Não sei quanto lhe dei. Ele também não soube quanto recebeu. Guardou o dinheiro sem o contar. Levantou a mão, num gesto de agradecimento e olhou-nos com a força do oceano.

Não consegui tirar-lhe uma fotografia. Deixo ao tempo a tarefa de lhe moldar o rosto sempre que nas minhas recordações eu evocar aquelas ilhas de gente gentil.