22 dezembro 2005

Mar de memórias



Ontem andei a viajar pelo mar das minhas mais antigas memórias. Fui à rua onde passei os primeiros seis anos de vida.

Poucas vezes lá tinha voltado, pelo menos com o propósito desta última.
Fui lá respondendo ao apelo de fantasmas que, definitivamente, se quiseram libertar das correntes que eu (não sei bem porquê) fui forjando ao longo da minha existência.

É uma rua igual a tantas outras, de um bairro (ainda) típico de Lisboa. Pelos meus olhos passaram imagens, sons e odores, como cenas em flashback de um filme inacabado que é a nossa vida.

Naquele tempo - princípio dos anos 60 - o Mundo tinha a dimensão da minha Rua. Conhecia-lhe os limites, os recantos da alma, os personagens que a cruzavam. Uma rua de chão calcetado onde as rodas da carroça do pitrolino se faziam anunciar com o seu matraquear de ferro contra a pedra.
Os mil pregões que nela ecoavam com a precisão sequenciada pelas horas do dia, de um tempo feito à escala de um burgo sem pressas e sem shoping's , bailavam-me na cabeça como a toada dolente de um fado antigo.

A minha rua começava com a vozeirada que vinha de dentro da taberna/carvoaria do 'Galego' , e acabava onde o chão tremia pelo contínuo trabalhar das máquinas rotativas do jornal 'O Século' . O cheiro acre a papel e tinta, conhecia-o bem, pois impregnava o fato-macaco do meu pai quando chegava a casa depois de mais um turno.

No prédio onde eu morava havia uma velha senhora a quem eu chamava Bé, e que eu visitava sempre que o sonho me pedia alimento. Nas suas mãos brancas corriam-lhe veias-rios de um azul puro. A Bé tinha um tesouro que partilhava com poucos. Coleccionava estatuetas feitas de cristal, sobretudo aves, resplandecentes de luz e cor, e toda a casa era um céu de pombas diamantinas que nos pousavam na cabeça e nas mãos - juro que as tive nas mãos... Eu, voava com elas no meu sonho, por cima das casas da minha Rua-mundo, guardião incansável daqueles dias!

Nas tardes solarengas, minha mãe deixava-me brincar no poial da entrada da nossa casa, vigiado pelo olhar carinhoso da minha avó materna, e então era aí que acontecia aquilo que recordo mais intensamente: Na janela com caixilhos pintados de verde, mesmo em frente da minha porta, um rosto de anjo aparecia por trás da vidraça, e num gesto repetido, acenava para mim. Sei que se chamava Leonor e que deveria ter o dobro da minha idade.
O que eu sei com toda a certeza é que foi a primeira vez que me roubaram o coração, e, ontem, quando passei por aquela janela, senti-lhe o bater desordenado clamando pela parte em falta.

Ilha reencontrada num mar de memórias, a minha rua foi o palco onde correram, a toda a brida, cavalos de pau de uma infância hoje revisitada.