20 setembro 2007

Yellow Suede Shoes

As folhas levantadas pelo vento forte erguiam-se, iluminadas pelas luzes da ambulância, num bailado trágico, no palco da noite.
Num cruzamento da avenida jazia um corpo, cinzento no mimetismo das sombras. Apenas saltava à vista no vulto o único sapato que ainda calçava. A sua cor, de um amarelo gritante comprometia o anonimato da morte.
Eu, ignorando a chuva que caía, não conseguia tirar os olhos daquela visão. Sentia-me preso como um cão, renitente em abandonar o dono que partira. Uma estranha leveza apoderara-se de mim, parecia que pairava.
Foi então que dei conta que me encontrava com um pé descalço. Faltava um dos sapatos amarelos que comprara na véspera.

19 setembro 2007

Gutemberg Míope

E continuo, insistentemente, a encher de títulos em CAIXA ALTA as páginas deste meu livro.

Escrita de cego que há muito perdeu o tacto

18 setembro 2007

O Beijo

Do seu queixo corria um fio brilhante, amargo, de sicuta, que uma sombra distraída revelou.
Depois, como um desejo satisfeito ou uma margem alcançada, abandonou-se numa ausência de lábios e abraçou a noite perene.

17 setembro 2007

...

Há momentos na vida em que, aquilo que nos parece mais apropriado fazer é baixar a vela do barco. Deixa-lo à deriva neste mar que nos esgota as forças do corpo e da alma.
Desistir desta teimosia de lutar contra a corrente que, inexoravelmente, nos levará para o abismo final.
Foi essa a minha vontade, ou ausência dela, ao receber a notícia do desaparecimento de um colega de trabalho.
Perdeste vela e remo, amigo.
Que as ondas sejam transparentes na luz e gentis no requebro.
Até sempre.

06 setembro 2007

O primeiro Poeta













Raízes

Uma vez um homem deitou-se, todo, em cima da terra. A areia lhe servia de almofada. Dormiu toda a manhã e quando se tentou levantar não conseguiu. Queria mexer a cabeça: não foi capaz. Chamou pela mulher e
pediu-lhe ajuda.
- Veja o que me está a prender a cabeça.
A mulher espreitou por baixo da nuca do marido, puxou-lhe
levemente pela testa. Em vão. O homem não desgrudava do chão.
- Então, mulher? Estou amarrado?
- Não, marido, você criou raízes.
- Raízes?
Já se juntavam as vizinhanças. E cada um puxava sentença. O
homem, aborrecido, ordenou à esposa:
- Corta!
- Corta, o quê?
- Corta essa merda das raízes ou lá o que é...
A esposa puxou da faca e lançou o primeiro golpe. Mas logo parou. - Dói-lhe?
- quase nem. Porquê me pergunta?
- E porque está sair sangue.
Já ela, desistida, arrumara o facão. Ele, esgotado, pediu que alguém
o destroncasse dali. Me ajudem, suplicou. Juntaram uns tantos, gentes da terra. Aquilo era assunto de camponês. Começaram a escavar o chão, em volta. Mas as raízes que saíam da cabeça desciam mais fundo que se podia imaginar. Cavaram o tamanho de um homem e elas continuavam para o fundo. Escavaram mais que as fundações de uma montanha e não se
vislumbrava o fim das radiculações.
- Me tirem daqui, gemia o homem, já noite.
Revezaram-se os homens, cada um com sua pá mais uma enxada.
Retiraram toneladas de chão, vazaram a fundura de um buraco que nunca ninguém vira. E laborou-se semanas e meses. Mas as raízes não só não se extinguiam como se ramificavam em mais redes e novas radículas. Até que
já um alguém, sabedor de planetas, disse:
- As raízes dessa cabeça dão a volta ao mundo.
E desistiram. Um por um se retiraram. A mulher, dia seguinte,
chamou os sábios. Que iria ela fazer para desprender o homem da inteira terra? Pode-se tirar toda a terra, sacudir as rema nascentes areias, disse um. Mas um outro argumentou: assim teríamos que transmudar o planeta todo inteiro, acumular um monte de terra do tamanho da terra. E o enraizado, o que se faria dele e de todas suas raízes? Até que falou o mais
velho e disse:
- A cabeça dele tem que ser transferida.
E para onde, santos deuses? Se entreolharam todos, aguardando
pelo parecer do mais velho.
- Vamos plantar a cabeça dele lá!
E apontou para cima, para as celestiais alturas. Os outros devolveram
a estranheza. Que queria o velho dizer?
- Lá, na lua.
E foi assim que, por estreia, um homem passou a andar com a
cabeça na lua. Nesse dia nasceu o primeiro poeta.


Mia Couto, Contos do nascer da Terra