22 junho 2006

Trivialidades

Resolvi publicar este comentário feito por Naia Castro num 'Post' anterior de forma a que fique mais visível para quem aqui vem (Naia, tem que deixar de postar nos atrazados)

Palavras para quê? é Naia Castro no seu mais puro, contraditório e arrojado discurso, pleno de desafios e que dá a este humilde espaço a intelectualidade que nunca ousou ter.



«Sr Perdigão,


Hoje gostaria de lhe falar de trivialidades... de coisas ditas “normais”... do dia-a-dia, compreende? De coisas a que ninguém dá importância, em que ninguém repara e que normalmente tropeçam sempre à frente do nosso nariz ... e não as vemos...

1ª Trivialidade

Há uns tempos uma colega de trabalho dirigiu-se a mim porque precisava de uma informação e começou:
- “Olhe desculpe, eu...”
Não a deixei continuar e perguntei:
- “Desculpo” do quê?
Perplexa e olhos nos olhos com aquela forma incisiva que tenho de travar as pessoas, respondeu:
- Desculpe, de nada, é uma forma de falar.
Ao que eu respondi:
- “Pois, é que quando se pede desculpa deveria ser por qualquer coisa que se faz, mas então diga lá o que quer.”
- “Sabe eu precisava de uma informação e sei que não é a si que devia perguntar, mas”...
Interrompi-a novamente:
- “Se não é a mim que deve perguntar, não pergunte”.
Cada vez mais atrapalhada, respondeu:
- “Bem, não era nada disto que eu queria dizer”
Tive que interromper, de novo e com voz autoritária mas a sorrir respondi-lhe:
- “Oh mulher! Vá directa ao assunto e diga o que quer, sem pedir desculpa, sem dizer que não devia dizer!”
Sorriu, respirou de alívio e sem rodeios foi directa ao assunto, disse o que realmente queria dizer, dei-lhe a informação, agradecemo-nos mutuamente e ela foi-se embora.

(É tão mais fácil, tão mais simples quando dizemos o que queremos, quando somos autênticos... detesto tretas! Não me venham com tretas! Parem de usar o “desculpe” para tudo e para nada! Parem de usar frases feitas para aplicar sem sentido nenhum!)

2ª Trivialidade

Com alguma regularidade tenho reuniões de trabalho. Mesas c/ blocos, canetas, águas, tudo a rigor. Habituei-me a reparar que no final das reuniões a maior parte das pessoas deixa as garrafas de água, ainda com água e estas teêm que ser deitadas fora. Normalmente sou a única pessoa que leva a garrafa consigo, quando ainda tem água e a consome até estar vazia.

(Habituei-me a reparar porque faz uns anos que vi um programa sobre os recursos naturais do planeta....O degelo das calotes, o aumento das temperaturas, a falha tectónica que percorre o planeta e teima em avançar e dá a ideia que nos há-de separar, daqui a uns milhões de anos em duas partes, uma para Norte e outra para Sul, a devastação da amazónia em troca do vil metal, o Kilimanjaro a ficar careca, o aumento de tempestades de areia – ai o Sahara, tão longe e cada vez mais perto – enfim, um sem número de coisas que me fazem sentir a vida tão breve, tão especial e tão estúpida.... sabe porquê Sr Perdigão? Porquê que passei a olhar as garrafas de água no final das reuniões? Porque nesse programa diziam que, em média, na Índia, morre uma criança por dia, com sede. Mais palavras? Mais trivialidades? Pois bem!)

3ª Trivialidade

Faço parte do povo. Do povo real (e com muito orgulho!). Mas há que definir de que “Povo” estou a falar: do povo que sai cedo e volta tarde, do povo que tem prestação no final do mês, do povo que se debate com um lugar, no fim do dia para arrumar o carro na chamada AML (adoro estas siglas – Área Metropolitana de Lisboa!). Esclarecido o conceito de povo (eu e os conceitos!), a 3ª trivialidade é sobre a atitude no arrumanço dos carros . Tenho uma postura muito crítica e pela segunda vez me orgulho da minha pessoa e ainda dentro do mesmo parágrafo (Oh Sr Perdigão, hoje até estou com sentido de humor...). Porquê o orgulho próprio? “Elementar”, meu caro amigo:

- porque nunca “tranquei” nenhum carro;
- porque quando recorro ao arrumanço nos passeios preocupo-me em verificar se ficou espaço para os peões passarem sem terem que recorrer à estrada;
- porque não me importo de sair 7, 8, 10 minutos mais cedo para ir buscar o carro à única praceta onde arranjei lugar;
- porque nunca, nunquinha mesmo molhei ninguém em dias de chuva! E a esta não faço comentários – esta é só para prós e para o povo, porque só o povo sabe o que é estar numa paragem de autocarro, ou a andar num passeio, em dia de chuva e ser banhado pelos automóveis!

4ª Trivialidade

Bla bla bla e bla e blablabla.

5ª Trivialidade

Bla, bla, etc, etc. Etc.

Sr Perdigão, desde início que disse que considero cada vez mais importante sermos cuidadosos, atentos, disciplinados... e não é só com os conceitos e com as ideias... aliás, como já deve ter percebido as ideias só se atingem pela praxis e a existência é um precedente.... hoje tentei falar do cuidado com as palavras... em não usa-las sem sentido... com o cuidado com os terceiros... ai ai os terceiros!

Acho piada que nunca vemos os terceiros como vemos os “nossos”. Ficamos lixados com “f” quando alguém fala mal da “nossa” mãe, do “nosso” pai, do “nosso” irmão, dos “nossos”, compreende? Mas afinal os outros, os “terceiros” também têm os “nossos” (que são deles).

A piada (sem piada nenhuma!) está em que:

- para além das “nossas” mães, as mulheres do mundo inteiro são, já foram ou virão a ser, também, mães de alguém;
- para além dos “nossos” pais, os homens, do mundo inteiro são, já foram, ou virão a ser, também pais de alguém;
(quer que repita a frase para os irmãos, para os tios, para os outros parentescos?...)

A piada (sem piada nenhuma!) está em que a minha mãe se tiver um acidente na estrada porque não tinha passeio para andar é uma tragédia. Mas se for outra mulher qualquer, por sinal potencial ou efectiva mãe de alguém isso não me lixa absolutamente nada.

Mas a pior piada disto tudo é que se os meus filhos nascessem na Índia, principalmente se fizessem parte da Casta dos Intocáveis e um, ou dois, fizesse parte das estatísticas daquele programa que vi, seria a tragédia (para mim obviamente!).

Porque na realidade eu até estou em Portugal e a água do Luso, do Fastio e das mais belas serras deste país é deitada fora no fim das reuniões, porque nem todos tinham sede.


(...)

O mundo está demasiado cheio de trivialidades, de “coisas do dia-a-dia”...

Agora até gostava de ver o nosso “amigo sem medo” vir-me com as teorias da Essência... Ou outro amigo qualquer (seu e/ou meu) vir-nos com as teorias da Essência... da necessidade hipócrita que todos têem em moralizar, em etiquetar, em pintar de azul o negro da brevidade destas míseras existências... 6, ou 8, sei lá, ou 9 biliões de existências! No mais belo planeta do Universo! No único em que podemos respirar! No único em que há as cores do arco-iris, no céu, na terra...Com uma vida tão breve! Tão mísera! Tão mesquinha! Tão hipócrita de teorias! Até um cetáceo tem maior esperança de vida que nós! Até a águia nos dá lições de rejuvenescimento para durar em média 70 anos!

Tanta trivialidade Sr Perdigão!

E eu aqui a gozar da vida e da saúde! Morrerei ainda hoje? Amanhã? Daqui a 20 anos? Que farei até lá? Por mim, pelos outros, pelos “nossos”, pelos “terceiros”, pelo país??? ... Que tretas irei dizer aos que vierem ver o que deixei?

Que tretas existencialistas, essencialistas, morais ou religiosas, que sistema ideológico, económico ou político vamos inventar para desculpar e remediar a trampa toda que aqui andamos a fazer?

Com sorte isto ainda rebenta primeiro e não teremos nada para dizer. Com sorte até teremos um ordenado razoável e pagamos, comemos e não refilamos!

Com sorte este fim de semana prolongado hei-de descobrir um oásis, divertir-me a valer, ocupar o meu espaço e não pensar mais na Índia!

Agradeço, Sr perdigão! Agradeço sempre e já sabe porquê... Porque estou aqui!

Naia Castro»

10 comentários:

Sandra disse...

Palavras para quê?? Está tudo dito... Bom texto com muitas verdades! :)

Beijocas e Bom Fim de Semana!!

Anónimo disse...

Sr Perdigão,

Tomei nota - não publicar no passado (eheheheh). Nem parece meu!

Não posso deixar de agradecer as suas palavras e as da Sandra.

Não vos conheço, mas as Vossas palavras deixam-me ver-vos atrvés das mesmas (recorda-se? lêr para além das entrelinhas?)

Bem, é só para vos dizer que voçês são pessoas muito acolhedoras, porque este blog é muito bom e de humilde só tem as pessoas no bom sentido da palavra e também para dizer à Sandra que o texto não está mesmo nada bom... tem muitas verdades, concordo, mas corrigo - o texto não fala de verdades, fala de "realidades".

Agora de bom é que não mesmo nada.

Mas permita-me usar uma frase do Sr Perdigão "Oh pra muito sorridente...".

(Fez-me bem ao ego).

Agradeço!

Bom fim de semana (a todos)

Naia Castro

Anónimo disse...

Sr Perdigão,

De quando em vez convidam-me para uns trabalhinhos que já só faço a meio tempo. Traduções, apreciações literárias, revisão de provas para edições, antes de irem para as gráficas... Nada de especial, mas sempre importante para mim. Já lá vai o tempo em que fazia vida da vida académica. Mas se me pedem estes trabalhos “nada de especial”, aplico-me o melhor possível e com satisfação e pontinha de saudade aceito, nem que passe noites sem dormir para os fazer.

Ontem terminei uma compilação de poemas. Pediram-me uma apreciação e uma crítica prévia. A autoria é de alguém a que nós chamamos de “amador”. Tem uma escrita fluente. Tem boa formação. Tem sensibilidade. Mas falta-lhe ali qualquer coisa...

Como quase sempre... na maior parte das coisas que leio..., neste âmbito.

Resolvi rever e repensar de uma forma geral todos os textos e todos os pensamentos que passaram por mim ao longo de quase 20 anos.

De certo modo fiquei triste. Há tanta gente a escrever em Portugal! Há tanta beleza, tanta sensibilidade nas coisas que li e tão pouco assunto! Matéria! Substância! Dedicação! Altruísmo! ...

Há tanto “lugar comum”, “déjà vue”!... Calma! Calmex! “Relex”! Não comece já o Sr Perdigão... Não tenho nada contra o “lugar comum”, mas sim pela forma como é tratado e apresentado.

Um exemplo que muito bem conhece: Mar de Memórias e História de Caronte. Se porventura tivesse que fazer uma apreciação destes textos e muito sumariamente diria que estão mesmo muito bons e não me parece (mesmo nada!) que falte ali aquela “qualquer coisa” que marca a diferença em qualquer género literário.

Porquê? Porque, exluindo todos os aspectos formais de análise (escrita, língua, frases, etc, etc, está indiscutivelmente bastante bem escrito), o facto é que tem “assunto”, tem “matéria”, não se trata apenas de um "lamechar" de palavras que só o próprio sente ou percebe. São textos que têm uma expressão muito própria, muito única e por isso muito autênticos e também por isso, quem quer que os leia revê-se de alguma forma naquelas palavras.

É esta a diferença entre aquilo que se escreve ao “sabor da pena” e do próprio egoísmo, sobre situações e pessoas que não dizem nada a ninguém e entre aquilo que se escreve de forma altruísta, com Asssunto, mesmo que sejam coisas banais ou “déjà-vue”, mas que respeitam a todos nós e que todos nós, de uma forma ou de outra, sentimos. Como se houvesse um eco cá dentro. ( O Sr Perdigão sabe que o eco só se ouve nas montanhas... em espaços vazios onde haja um “objecto” que permita a reflexão do som, certo?!!!!)

Escrever não é despejar a emoçãozinha que tive no dia Y por causa da pessoa X de quem até gosto muito ou até queria ser como ela!

Escrever até pode ser tudo isto, mas é de certeza muito mais que isto! As emoções, os lugares, os sentimentos, são sempre comuns. Todos temos casos similares, todos sentimos quase sempre as mesmas coisas... as pessoas não são diferentes! Têem é formas de apropriação do real diferentes e podem, ou não, filtra-las e expô-las de uma forma diferente. É a chamada "digestão"!

É como o bacalhau. É sempre o mesmo. Mas cozinhá-lo e apresenta-lo é às mil maneiras possíveis é que já outra coisa.

O quê que eu quero dizer com isto? O costume....

Vivam! Ocupem o espaço! Olhem a realidade! Apanhem ar, chuva, sol, calor, frio... sintam sede, sintam fome... sintam a barriga a rebentar de cheia... misturem laranjas com leite... Levantem pesos, peguem em penas de aves, soprem sobre as montanhas, entrem no mar no Inverno, quando estiverem 3 Cº. Apanhem o escaldão da vossa vida. Sejam “sem medo” e sejam criativos!

Deixem a realidade passar, tocar e entrar na vossa pele, nos vossos olhos, entranhar-se nos vossos ossos! ....

... Vão ver como depois o conceito surge! E de que forma! Atenção - é sempre o mesmo porque é único! Mas tem diferentes apropriações... É por isso que Fernando Pessoa foi até à última com o absinto!

E eu torno a perguntar – que andamos aqui a fazer?! O que queremos dar aos outros?! Que seja algo de importante ou pelo menos proveitoso!

Agradeço.

Naia Castro

Anónimo disse...

Quando a chuva desce sobre os campos e a lama se entranha nos sapatos,nada mais é igual...
Nunca nada é igual!
Nunca ninguém é igual!
... e a pessoa dista do homem quanto o sujeito exige o predicado.
- O que é preciso é ser-se natural e não sofrer por não ter nascido um rochedo no meio do mar!
- Sem medo!

Anónimo disse...

Sr Perdigão,

Há tantos enganos e desencontros... Há tantos mal entendidos... Tanta consequência por causa da consequência em ter factos e causas e estar preso a eles... Há tantas pessoas à espera do encontro marcado atrasado na fé de que mais cedo ou mais viria porque o tempo não importa nem passa nem conta quando a fé é grande e a essência nos basta... Só que a existência é única e cada um se apropria da própria sem perceber o vazio que sempre volta porque a fé era pouca e a essência não é só nossa nem nos pertence e caminhamos lado a lado sem perceber que tudo nos toca e nos chama e a impertinência do Ser está em não mergulhar no profundo dos oceanos para ver as maiores montanhas do planeta. Verdadeiros icebergs... Verdadeira solidão a de existir!

Nada é o que pensamos porque tudo existe à revelia. Porque não entendem que apenas me procuro a mim? Que a fé é maior e a busca mais aturada? Que a espera na Essência que nunca chegou porque estava errada e morreu?

Apenas me devolvo os laços e a tranquilidade de existir com uma paz enorme em saber que não era eu que devia esperar... Afinal é a Essência que me espera. Que felicidade caminhar para Ela todos os dias, pouco a pouco... sempre mais além...

e todos os dias ficaram belos e bons e alegres e todos os dias A vejo a sorrir para mim.

É para lá que vou. É aqui que estou. Agradecendo cada momento.

Medo? Eu tenho. E muito mesmo! Mas a Fé continua comigo e Aquele sorriso é o meu Guia...

Está em tudo e em todos.

Só posso mesmo agradecer.

Naia Castro

zmsantos disse...

Naia, não sei que lhe dizer. Voçê sobrelotou, superlotou o pouco espaço que me resta à capacidade de entendimento que possuo para as metafísicas.

Essência pela fé? Procura-la quando sabemos que é ela que nos espera?
Reconheço o meu desentendimento em questões tão profundas. Sou um ser. Por vezes com muita fé, quando já nada me pode valer. A minha essência é saber que depois do sono acordei, que nada me doi. Que aqueles que amo se encontram bem. Que ainda sei sorrir. Que ainda me lembro do sorriso, dos sorrisos de ontém. De viver o melhor que sei, para mim, para os outros, e quando digo outros, são todos os que se cruzam comigo, o carteiro, o polícia, o pedinte...

Entendo melhor, quando você me fala de bacalhau e das mil e uma maneiras de o cozinhar.
De pôr mais um prato numa mesa já repleta de amigos. De soltar o espírito atravéz da degustação de um nobre vinho. De rir até ás lágrimas com a ingenuidade pura das crianças.
De apanhar chuva, sol, frio ou calor quando temos por destino um campo de lírios acabado de despertar...

Respeitosamente

Anónimo disse...

Pois é Sr Perdigão...

Há tantos enganos e desencontros... Há tantos mal entendidos... Tanto conceito subertido... Tanta perversão nos sentimentos que dizemos que temos, que juramos são eternos, que dizemos, “és tu quem eu quero”, até à primeira tempestadezinha, percebe...?

Há tanto objectivo por cumprir, tanto trabalho por fazer, tanta cidadania por cumprir, tanto bacalhau para comer...

Sabe o que é a negação de si mesmo, todos os dias? Nem que dure uma vida? Todos os santos dias negar aquilo que se podia ter sido e não se foi e cada vez mais ter a certeza de que “isso” era o nosso Ser?

Tanta carroça há frente dos bois... Tanto atleta que para de treinar... Remar contra maré não fácil, o "fácil", o "comum" é “Tou farto”, “Assim não dá” “Ai, ai que agora doeu”, "não posso mais".... etc. etc. etc.

Fé não é metafísica. Metafísica, teologia, religião, entre outros “parentes” é para os que que preferem “crer em vez de saber” (esta é a única coisa boa que o nosso amigo Nietzsche disse).

Fé é só para os duros! Os que não desistem, os que continuam, os que não negam.... É para puristas, é para autênticos, é para frontais é ... até às últimas consequências e é só mesmo para Homens e Mulheres, de carne e osso, que não param, que ocupam o espaço, que vivem, que Existem acima de tudo...

Sr Perdigão – a fé exige muita presença (não de espírito que esse é para os “crentes” os que preferem não saber) e muita força preparação física... afinal dizem que move montanhas... a mim faz-me caminhar, suar, recomeçar... todos os dias... é Aqui que Estou e ainda bem que o Sr Perdigão Está, também.

E eu agradeço!

Naia Castro

Nota - um dia destes explico melhor... não tou com muita paciência hoje - não é nada consigo, nem com ninguém é mesmo só resultado de 1 noite muito mal dormida : )))

Anónimo disse...

Sr Perdigão...

Há momentos na nossa vida em que precisamos parar. Calar. Isolar. Fazer um círculo à nossa volta. Metermo-nos lá dentro e fechar a porta... Por isso gosto do deserto, do nada. O vazio permite-nos o paradoxo do recomeço para o “tudo” e fechar o círculo à nossa volta é a melhor companhia que podemos ter para nós próprios. A mais autêntica, a nossa outra metade, o profundo de nós mesmos, que nunca nos engana e sempre nos espera... O erro, o equívoco, a grande saudade e o sofrimento é procurarmos nos outros o que só em nós podemos encontrar. Bem , mas essa é outra conversa...

Para além do deserto... entre outros espaços... um dos melhores locais onde me encontro vezes sem conta...onde encontro paz.... e onde tudo “bate certo” é nos cemitérios.

São locais extraordinários (bem haja a Humanidade por ter mantido este ritual desde os Neanderthalenses!). Aproximamo-nos e já nos invade uma necessidade profunda de silêncio, de paz, de respeito, de humildade... há medida que entramos é o cheiro adocicado da metamorfose de vários tipos de flores juntas... e nesta altura do ano e com o tempo nublado... este cheiro intensifica-se e é único... traz uma sensação de conforto cá dentro... não sei (porque não me recordo), mas deve ser a mesma sensação que estar ainda no ventre das nossas mães. Ao longo das ruas, tudo é organizado, tudo é limpo... os passeios, as escadas, as lajes são de uma limpeza, de uma pureza e de uma beleza raras. As ornamentações, os arranjos florais, as lápides... o mármore... uma das mais bonitas obras primas da natureza... e depois... no fim... quando já nada se pode fazer, nem dizer. Duas datas, por vezes uma foto, por vezes uma dedicatória e mais nada... A paz enfim. “Valeu a pena?” Qual seria história de cada um deles?

Para os mais velhos cujas fotos acusam a idade avançada nos sulcos bem marcados e fundos no rosto fica quase um alívio por vê-los ali repousados. Tiveram a sua vida, duraram o que a esperança de vida supostamente lhes permitiu e o organismo conseguiu digerir. Mas há os mais novos, os muito, muito mais novos... acidente? Exageros de uma juventude atribulada? Excesso de álcool? De velocidade? Insustentabilidade de existir? Mito de James Dean? Doença súbita? Fatal?

E apenas duas datas... por vezes uma dedicatória.... por vezes uma foto. Nada mais. Tudo ali resumido. As dores e os prazeres. As lágrimas e os sorrisos. As amizades e as inimizades. O bem e mal querer. Tudo ali. Os sonhos, as frustrações, as ânsias, os amores, as palavras que se trocaram e as que nunca se disseram...

Duas mulheres desciam uma das ruas e interromperam-me o sossego. De papel na mão, uma dizia para outra:

- “Estás a ver? E por este talhão. É este o nº que aqui está. Agora só temos que seguir as campas e procurar o nº certo.”

Pensei - se não fosse este o contexto e as mesmas mulheres se cruzassem comigo numa qualquer rua de Lisboa, de papel na mão, uma delas diria:

- “Estás ver? É por esta rua. É o nome que está aqui no papel. Agora só temos que procurar o nº da porta”.

A vida e a morte... tão diferentes, tão iguais, com caminhos tão comuns, a encontrarem-se a cada momento infinito no universo.

Afinal também se procura a morada dos mortos. Arranja-se-lhes a casa, perfuma-se-lhes o espaço, limpam-se as entradas.

Que complexidade! Que mistério, que contradição, que absurda a humanidade!

Saí. A cerca de 100m havia uma praceta onde um bando de miúdos gritava atrás de uma bola. Um tinha a camisola do Figo, com a braçadeira e tudo, outro a do Ronaldo, outro tinha uma canarinha e dois deles gritavam: “passa para mim que eu sou o Mantorras. Vou marcar um frango áquele franciu!”

Recordei vagamente que acabara de ver uma data mais ou menos entre 1981 e 1996...ainda o Figo (salvo erro, mais coisa menos coisa) devia estar no Sporting.

Sr Perdigão. É bom estarmos aqui! O que preocupa é costume...

Mas agradeço!

Naia Castro

zmsantos disse...

Naia, que atitude tão mórbida. Concordo que por vezes todos temos necessidade de nos isolarmos, mas encontrar a paz e o sossego num cemitério? Bem só se fôr para os que lá estão, debaixo da terra. Confesso que um livro, uma sinfonia ou o exercício de contemplar uma paisagem me trazem mais serenidade que o caos ordenado dum talhão fúnebre. Nesses lugares só vislumbro o comércio e a exploração da dôr alheia de quem vive da venda de flores, pedras, estatuetas, santidades e afins. Testemunhos não de quem já partiu mas de alguém cuja consciência lhes impera a necessidade de deixar a quem passa uma frase já tão gasta, gravada a ouro numa lápide.
Não penso que este ritual que os Neandertais nos deixaram seja motivo para júbilo.Decerto saberá que outras cúlturas tratam e respeitão os seus mortos de formas diferentes. Os hindús e outros têm a cremação, os antigos índios americanos o embalssamamento, e na antiguidade os povos do Mediterrâneo fértil e os mais desenvolvidos da América do Sul expunham os cadáveres à decomposição e aos abútres.
Dentro da nossa cúltura ocidental ainda prefiro como alternativa o espaço fresco e com pouca luz de um templo. Lá temos as condições a uma introspecção, onde tanbém não faltam os cheiros, o silêncio a magestade das pedras. As campas, se as houver, são rasas e assinaladas em latim.

Desejo-lhe a tranquilidade de existir, a paz de viver, a sabedoria dos sentidos.

Respeitosamente

Anónimo disse...

Sr Perdigão...

Achei piada...

“que atitude tão mórbida.” – Porquê? Caminhar? Percorrer ruas? Observar coisas bonitas. Ter o cheiro das flores à volta. Disfrutar do silêncio mais absoluto e sagrado que há? Meditar nas vidas que ali estão e nas que estão à volta e que é apenas uma questão de tempo... Concluir que há tanta cagança e tanta guerrinha sem sentido porque ali tudo “bate certo”? Perceber que entre a vida e a morte a linha é tão ténue... Mórbido é estar sentado em frente ao televisor, a ver se a vida passa e com sorte nem nos há-de perguntar nem pedir contas de nada...! Principalmente mórbido é se estiver a ver a TVI!


Também achei piada....

“Nesses lugares só vislumbro o comércio e a exploração da dôr alheia de quem vive da venda de flores, pedras, estatuetas, santidades e afins.” Trabalha? Precisa do seu ordenado? Faz compras? Vai ao supermercado? Não me diga que caça para comer e cultiva para temperar e para fazer a sopa?... Compra electrodomésticos? Ajudam-no nas suas tarefas? Tornam-lhe a vida mais confortável? Gasta e paga electricidade? E gaz? E água? Tem TV Cabo? Tem plantas? Gosta de jardinagem? E decoração? E bijuteria? E aquela coisa que tem lá em casa que lhe é perfeitamente supérfula e inútil mas que lhe dá um prazer enorme ter e vê-la e até mostra-la aos amigos? É deste mundo, certo?

Pois deixe que lhe diga que o ritual é das coisas mais bonitas que o Homem conservou ao longo da evolução (e pelos mortos então é uma questão de respeito, de homenagem ) e que sem ritual não há mística e sem mística bem pode deitar muita coisa fora e começar a viver de outra forma... (é só para sermos íntegros... porque isto do blá blá...) É que na vida há imensos paralelismos, nós é que insistimos em ver só o que queremos e como queremos (dá-nos mais jeito! Não nos incomoda tanto!)

Falou nos hindus – não vejo a diferença – a cremação pressupõe um vaso com cinzas e dá lugar a uma planta – todos temos formas de relembrar os mortos e lhes prestar culto... sabe que até os canibais tinham um ritual antes de os paparem...

Falou nas flores... As flores e as velas à porta do cemitério estão da mesma forma expostas que nas prateleiras dos supermercados e exploração é comer e calar ou pagar sem ver o preço e sem fazer comparações... Exploração é não saber as regras basilares da economia, da oferta e da procura – Se temos que pagar há que saber apenas o que é melhor... e nãom irmos em cantigas...

São os paralelismos Sr Perdigão... a vida está cheia de paralelismos, até com a morte! A questão é até que ponto queremos ver as coisas como elas são ou como nos incomodam menos e servem melhor os nossos interesses egoístas...


Agora a esta não achei piada – “Desejo-lhe a tranquilidade de existir, a paz de viver, a sabedoria dos sentidos.” Foi tão bonito que deixou-me quase em lágrimas.

Agradeço
Naia Castro