13 janeiro 2006

Charon's Kiss



A tarde chegava ao fim. Aos poucos a noite tomava de assalto a cidade, regurgitando as suas entranhas por onde passava.
É tempo de se abrirem as portas do limbo, e o cortejo de penitentes almas erram pela cidade procurando encontrar em etílicas paixões o ansiado descanso.


No bar respira-se, ainda, os restos de fumo da noite anterior. Lá fora cai uma chuva que ninguém encomendou e que a todos chateia, teimosamente batendo nas vidraças da montra banhada a vermelho-neon, onde se anuncia:

P-A-R-A-D-I-S-E - B-A-R

As mesas estão vazias e as garrafas adormecidas nas prateleiras demoram a despertar sob a luz frouxa.

Mais uma vez sou o primeiro de muitos que aqui aportam como velhos navios em busca do seu último cais.
Sobre o balcão, num jornal, um título em caixa alta salta á vista: "Americanos chegam á Lua... "
A juke-box vai-se engasgando com o "Yesterday... all my troubles seems so far way... " Sinto a gola do casaco ensopada sob o meu pescoço, e a necessidade de me evadir começa a tomar a forma de um nó na minha garganta.

O barman enche-me o copo num gesto mecânico aprendido numa rotina já antiga. Outros se seguirão, dando início ao quente e desejado torpor que nos invade a alma. Aos poucos, esqueço-me de mim. Da vida sempre adiada, esqueço-me duma guerra que não quis vencer, esqueço-me da imagem de corpos que ganham novas poses ao cairem estropiados pelas minas. Esqueço-me da indignação de um curso inacabado, esqueço-me da face da minha mãe que não vi morrer, esqueço-me dos filhos que não nasceram, duma mulher que se cansou de esperar. Esqueço-me da vida e da urgência de lhe pôr um fim...

Ela apareceu como que teletransportada de uma ficção que não esta, a minha... Tinha um ar ausente que os seus olhos vazios confirmavam, e na mão um copo que não vi encher. Sentou-se num banco alto, ao balcão, e por baixo das roupas justas que trazia, imaginei-lhe um corpo de ébano esculpido pela mão de Benzaiten. Era-me estranha mas sentia que a conhecia há muito. Qualquer coisa me dizia que aquela mulher estava ali por minha causa. Sentia-me intimidado com a sua presença, e ao mesmo tempo incapaz de desviar dela o meu olhar, desejava-a...
Como se tivesse lido os meus pensamentos e sem hesitar, ela levantou-se, chegou-se a mim, e com a boca molhada de líbido beijou-me sofregamente (nem mais).

Pareceu-me ouvir o bater das asas de Pégaso pronto a levar-nos a um qualquer Éden. O ambiente taciturno da sala escureceu por completo. Uma longa vertigem apoderou-se do meu corpo já febril de volúpia. Caí...!


Acordei no meio de uma paisagem estranha, irreal. A areia fria da praia que pisava deixava ver vestígios de outros que lá estiveram antes de mim.
O ar que respirava era espesso, como lodo movediço, num caminho sem retorno. Á minha frente, com os pés dentro de água, perfilava-se a figura de um velho, coberto com uma túnica, de cabelos longos e desgrenhados cor de prata. Os seus olhos faziam-me lembrar os de uma mulher que uma noite eu conhecera num bar...

Era Caronte, o barqueiro, quem me convidava a entrar na sua barca, e para lá do Estige entrar no mundo dos mortos. Trocara a usual moeda deixada debaixo da língua do morto, como pagamento, pelo beijo que lhe dei no bar, enquanto mulher.
E eu, ironicamente, tivera da morte o beijo que me faltara em vida.

2 comentários:

Cravo a Canela disse...

Palaras para quê, é um artista português...

Abraço,

Rogério Charraz

Cravo a Canela disse...

Pois então muitos parabéns pelo meio século. Só espero chegar com toda essa vitalidade, com esse espírito jovem e esse gosto pelo lado bom da vida.

E logo faço questão de passar pelo Qlub 71 para um abraço.

Hasta luego.

Rogério Charraz