04 setembro 2006

Sal

Fonte de nha sodade

Êxe spancadura que bo ti ta uvi
ca ê roncadura de pómba, nem vôo de pardal,
Ê bo coraçom ta crê saí
desse peite que ti ta pertál.


Paré:
Li ondê que já tive um horta,
hoje ê sô um pórta
pa mundo de bo ôte idade,
bôs lembrança ta speróbe.
Bá nh'armom, bá, bá mata sodade!....

Sérgio Frusoni (Cabo Verde)

TRADUÇÃO

Este espancar que estás a ouvir,
não é marulhar de pomba, nem voo de pardal.
É o teu coração a querer sair
desse peito que o está a apertar.

Pára!
Aqui onde já houve uma horta,
e hoje é apenas uma porta
para o mundo da tua outra idade,
as tuas recordações esperam-te.
Vai irmão, vai matar saudades!....

« Todo este campo foi, outrora, uma jardim verde. Abundante de produtos hortícolas: Batata, feijão, tomate, bananeiras, coqueiros, tâmareiras, mangueiras. O milho era tão alto que uma pessoa tinha que o vergar, debaixo dos pés, para encontrar o caminho onde pisar. Isto contava-me a minha avó, quando menina para aqui vinha trabalhar nas terras da família. Hoje é esta desolação de pedras e pó, onde nem os lagartos aguentam uma vida tão dura.»
Assim soavam as palavras do nosso guia Edy, soluçadas pelos solavancos da Toyota de 12 lugares que percorria aqueles caminhos pedregosos, levando o grupo que partira da vila de Santa Maria do Sal até as “Terras das Miragens”.
Edy é um crioulo nascido no Sal, a quem, pelo seu empenhamento e esforço foi facilitada a educação em Portugal. Hoje, com 25 anos e um curso de relações públicas, Edy é um dos muitos guias turísticos a operarem na ilha. « Trabalho bom. Limpo. Conhece-se muita gente. Mas tô penssando dar o salto pra longe. Não sô galo de capoeira, não,»

O Sal. Foi sem dúvida a menos atraente das ilhas do arquipélago que visitei.
Os hoteis, resorts e estâncias sucedem-se a um ritmo alucinante. As filas no balcão das toalhas de praia, a louca corrida ás espreguiçadeiras da piscina ou o ataque kamikaze ás mesas do buffet quase me faziam esquecer a morabeza com que fora recebido nas ilhas por onde passei. O turista pé-descalço, aquele que, de máquina em punho, filma as mesas do pequeno almoço no hotel (eu vi, não é treta) enche por completo a ilha. Famílias numerosas de seis ou sete pessoas, com crianças em constantes birras, casais de meia idade a discutirem na praia porque ele não tira os olhos da loura que a seu lado se encontra, lânguidamente deitada e que lhe exibe os naturais atributos. Enfim, de tudo um pouco, a lembrar um típico domingo nas praias da Costa de Caparica.

O assalto por senegaleses em constantes tentativas para vender bugigangas, ditas artesanais, que nada têm a ver com o artesanato, pobre, de Cabo Verde, tomava porporções surrealistas, ao ponto de te colocarem sucessivos colares ao pescoço na esperança de que, pelo menos um, tu irias comprar.

Felizmente que foram só dois dias e que eu trazia indicações dos melhores sítios onde comer, gentilmente passadas pelo nosso amigo Pedro Pereira aquando a nossa estadia na cidade da Praia. Aqui fica o registo simpático da nossa passagem pelo restaurante Mateus onde a boa culinária e a simpatia do proprietário aliada a uma música tradicional tocada ao vivo e sem microfones foi o bastante para fazer renascer em mim o espírito simples e sincero das gentes de Cabo Verde.

E como para confirmar a regra existe sempre uma excepção, quero aqui contar a perola que em todas as minhas crónicas sobre as ilhas que visitei em Cabo Verde sempre acontecerá.

Uma noite, vinhamos do jantar no Mateus, a caminho do hotel, quando demos pela presença de uma figura que sentada no passeio parecia remexer em algo á sua frente.
- Não deve estar a vender nada, pensei eu. Ali, quem queria vender alguma coisa corria atraz dos possíveis fregueses. E avançei, já disposto a não parar. Mas nestas coisas da alma, a Fátima tem um sexto sentido, raramente se engana, e de repente, diz-me: -Vamos ver o que está a fazer!
Quando chegamos, vimos um homem, ainda novo, não deveria de ter mais de trinta anos. Mas pelo seu aspecto, descalço e de parca vestimenta, aparentava pelo menos cincoenta. Á sua frente tinha um montículo de pequenas conchas, búzios que a maré trouxera para a praia onde os recolhera. Respondera á nossa saudação com um «boa noite amigos» sem levantar os olhos do que estava a fazer, retirara uma agulha de dentro do caos organizado que era a sua cabeleira de rastas e com ela furava os pequenos búzios que enfiava, entrecalados, com contas coloridas num pedaço de nylon. Disse que se chamava Imanuel, mas que todos o conheciam por Ima. Não tinha família ou outros bens. Dormia na praia, vivia do que lhe davam e da magra receita dos seus trabalhos com conchas. Não lamentava a sua sorte. Esta era a vida que lhe fôra dada. Aceitava-a com a submissão de quem crê que todos os homens têm o seu destino escrito á nascença.
Perguntou-nos de onde eramos. Respondemos que eramos Portugueses, de Sintra.
Nunca tinha saído de Cabo Verde, mas um amigo em tempos lhe dissera que Sintra era a última paragem de uma linha de combóios.
A pulseira de búzios ficara completa. Deu-lhe um nó nas extremidades, levantou os olhos para a Fátima. Uns olhos de um azul claro onde morava o mar de Cabo Verde, e disse: - esta é para ti. É uma oferta!
Seria apenas mais uma dissimulada maneira de ganhar dinheiro? Seria uma manhosa artimanha de levar a vida? Não acredito! Fosse o que fosse, o Ima veio connosco no coração! Abri a minha carteira e quase que a despejei nas suas mãos. Não sei quanto lhe dei. Ele também não soube quanto recebeu. Guardou o dinheiro sem o contar. Levantou a mão, num gesto de agradecimento e olhou-nos com a força do oceano.

Não consegui tirar-lhe uma fotografia. Deixo ao tempo a tarefa de lhe moldar o rosto sempre que nas minhas recordações eu evocar aquelas ilhas de gente gentil.

1 comentário:

Uma vida qualquer disse...

É possível ter saudades de um momento que não se viveu? Eu tive-as. Obrigada